Após obter experiência em assuntos relacionados com a sustentabilidade da dívida em meados da década de 90 (trabalhando na concepção e implementação da Iniciativa dos Países Pobres Mais Endividados ou PPME, não consigo evitar a sensação de déjà vu, à medida que crescem as preocupações sobre a sustentabilidade da dívida dos Países de Baixa Renda (PBR). Sem dúvidas, a Pandemia da COVID-19 piorou a situação, mas convém relembrar que o recrudescimento do sobre-endividamento nos PBR era evidente e largamente discutido nos círculos de Política Fiscal, muito antes de Fevereiro de 2020.

Desde 2013, o número de países elegíveis para o financiamento concessional pelo Banco Mundial em situação de alto risco ou de sobre-endividamento quase triplicou, de 13 para 35 (33 em 2019), e o rácio médio da dívida face ao Produto Interno Bruto (PIB) subiu de 40 para 60%. Tal ocorreu paralelamente ao apoio significativo prestado pela comunidade internacional (e pelo Banco Mundial, em particular), para melhorar a capacidade de gestão de dívida nos PBR. Apesar disso, e mesmo perante um cenário caracterizado por taxas de juro persistentemente baixas ao nível global, o pagamento de juros medianos dos PBR cresceu 128%, entre os anos 2013 e 2018.

Sim, falar depois dos factos é fácil. Este blog não é uma tentativa de afirmar que a situação actual deveria ter sido facilmente prevista (embora esta afirmação seja discutível), mas sim de enfatizar a urgente necessidade de aprender com iniciativas do passado. É verdade que muitos factores subjacentes ao crescimento do sobre-endividamento pré-COVID, tais como a descida persistente dos preços globais de commodities não era facilmente previsível. O Grupo de Avaliação Independente (GAI) terminou, recentemente, a terceira de uma série de avaliações macro-orçamentais que consideram, entre outros aspectos, a evolução do sobre-endividamento dos PBR e oferece oportunidades de aumentar a eficácia do apoio prestado pelo Grupo Banco Mundial, visando reforçar a resiliência orçamental dos PBR.

A Avaliação da Assistência do Banco Mundial para a Gestão das Finanças Públicas e Dívida nos países elegíveis para a AID, implementada pelo GAI, em Fevereiro de 2021, e focada na década que se seguiu à crise financeira global de 2008, salienta que vários PBR aumentaram, abruptamente, os empréstimos não concessionais de curto prazo para financiar o investimento público que promove o crescimento destinados a colmatar as lacunas de infra-estruturas e, por conseguinte, cumprir com os Objectivos Globais de Desenvolvimento. Assim, os parceiros no sector do desenvolvimento prestaram um apoio significativo para reforçar a capacidade de gestão da dívida durante este período, com muitos resultados positivos relativos ao número de países que cumpria os requisitos mínimos de boas práticas em termos de gestão da dívida.

Contudo, e tal como foi demonstrado pela avaliação do GAI, estes apoios não foram sistematicamente acompanhados por esforços similares visando assegurar a qualidade da Gestão do Investimento Público (GIP), o que inclui a capacidade sistemática para escrutinar de forma transparente o custo-benefício do investimento público em infra-estruturas, bem como em outros sectores. Com efeito, durante a última década, os diagnósticos no sector de Gestão do Investimento Público foram realizados pelo Banco, em menos de metade dos países elegíveis para recursos concessionais pela AID, o fundo do Banco Mundial para os países mais pobres, com a procura concentrada nos PBR de maior renda. Dos 32 países elegíveis para a AID em situação de alto risco ou de sobre-endividamento no AF18, apenas 10 tinham recebido apoio do Banco Mundial, durante a última década, para a melhoria das capacidades de Gestão do Investimento Público.

Em Julho de 2021, o GAI publicou a sua avaliação Contributos do Grupo Banco Mundial para lidar com vulnerabilidades orçamentais e do sector financeiro ao nível nacional. Esta avaliação procurou perceber a adequação do apoio prestado pelo Grupo para a preparação em matéria macro-orçamental e de crises do sector financeiro. Constatou que, fora do contexto dos esforços de estabilização, o Grupo Banco Mundial foi menos eficaz ao lidar com os clientes relativamente à expansão pró-activa de tampões, reforço das instituições e criação de capacidade de melhor preparação e gestão de crises económicas. Ademais, a avaliação ressaltou a tendência optimista presente nos pressupostos de crescimento subjacentes às Análises de Sustentabilidade da Dívida (ASD), assim como as importantes lacunas na qualidade e disponibilização de informação sobre o passivo contingente das Empresas Estatais.

O GAI publicará, em breve, o seu Early Stage Evaluation of IDA’s Sustainable Development Financing Policy (SDFP). A SDFP foi adoptada, em Julho de 2020, visando incentivar os países elegíveis para a AID a atingirem e manterem a sustentabilidade da sua dívida, tomando medidas visando um financiamento mais transparente e sustentável. A base dos incentivos da SDFP é o requisito para países que, mediante as ADS, são de risco moderado a elevado de sobre-endividamento para que estes implementem acções em matéria de desempenho e política (ADP). As ADP têm como objectivo melhorar a transparência da dívida, promover a sustentabilidade orçamental e reforçar a gestão da dívida. Os países elegíveis para a AID e em situação de baixo risco de sobre-endividamento que usem as ADS estão isentos dos requisitos para implementar as ADP.

Há que salientar, igualmente, que um terço dos países que registou um aumento do risco de sobre-endividamento durante a última década também passou por uma deterioração a dois níveis em menos de três anos, pelo que, a avaliação do GAI recomendou que uma conclusão das ASD de «baixo risco de sobre-endividamento» não deveria ser suficiente para tal isenção. Dada à rapidez com que o sobre-endividamento ocorre, bem como as tendências optimistas sobejamente documentadas pelas ASD, a avaliação recomenda que o requisito para a implementação das ADP não seja unicamente determinado através das ASD. Embora o GAI não sugira quaisquer outros critérios para a isenção de ADP, os PBR cuja avaliação seja de baixo risco de sobre-endividamento podem, também, ter de demonstrar um padrão mínimo de transparência nos dados apresentados, incluindo os relativamente ao passivo contingente associado às empresas e garantias estatais.

Então, em que ficamos? Podemos tirar ilações destas três avaliações do GAI para traçar um caminho rumo a um uso mais resiliente, responsável e produtivo do crédito? A resposta é inequivocamente positiva.

O recente comunicado do Comité de Desenvolvimento menciona directamente a importância de haver mais transparência e capacidade de gestão da dívida, apelando a que o Grupo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional «continuem a coordenar esforços para reforçar a transparência e capacidade de gestão da dívida, incluindo um processo de reforço da qualidade e consistência dos dados da dívida e melhorar a divulgação da dados dívida, ajudando, simultaneamente, muitos PBR e Países de Renda Média a atingir a sustentabilidade da dívida e orçamental».

Ninguém pode refutar a necessidade de haver uma maior transparência nas quantias, nos termos e condições dos empréstimos soberanos ou que melhorias na capacidade de gestão da dívida dos Governos visando minimizar custos e riscos associados seja uma condição indispensável para uma gestão macro-económica responsável. Estas são iniciativas importantes que devem continuar.

Porém, com os custos de uma eventual crise de sustentabilidade da dívida a situarem-se na casa dos milhares de milhões, tais iniciativas podem não ser suficientes por si só. Assim, as três avaliações do GAI podem fornecer mais directrizes sobre as medidas adicionais a tomar. Primeiro, temos de dar maior atenção à qualidade da despesa financiada pelos empréstimos do sector oficial. De facto, este ponto foi claramente reconhecido pelos representantes da AID, no âmbito da 19ª Reconstituição da AID, a qual afirma que «o primeiro desafio é o de ajudar os países elegíveis para a AID no sentido de assegurar que o benefício [dos recursos emprestados] supere os custos de serviço da sua dívida. A AID e outros parceiros podem intervir apoiando iniciativas que aumentem as capacidades de cada país em áreas como gestão das finanças públicas, gestão do investimento público...e gestão da dívida».

Para começar, os Bancos de Desenvolvimento Multilateral, incluindo o Banco Mundial, devem incluir, regularmente, um conjunto de diagnóstico económico central e orçamental utilizado para informar as estratégias dos países e definir prioridades, uma avaliação da qualidade da gestão de investimento público, como, por exemplo, a Avaliação de Gestão do Investimento Público (AGIP) do FMI. Aos países que recebam apoios concessionais do Banco Mundial e procurem a isenção de implementação de ADP poderão, também, ser exigidos regularmente uma Avaliação do Desempenho e Gestão da Dívida (ADGD), por exemplo, a cada cinco anos, para esclarecer sobre onde se revela necessária maior atenção quanto à transparência e gestão da dívida, no pressuposto da publicação da ADGD. Há outros padrões de transparência dos dados que poderiam ser reforçados, incluindo o Sistema de Notificação de Dívida (SND) do Banco Mundial, cuja abrangência pode ser alargada para incluir empréstimos às Empresas Estatais e os incentivos para a conformidade poderiam ser reforçados.

Não é possível afirmar que as acções supramencionadas pudessem ter prevenido o recrudescimento pré-COVID do sobre-endividamento em países elegíveis para a AID. O apelo intuitivo de medidas pró-activas que promovam investimento público de melhor qualidade, bem como melhores dados e mais completos sobre o comportamento dos Governos em matéria de empréstimos, incluindo a dívida das Empresas Estatais e garantias públicas, não deveria ser um tópico controverso. Vale a pena salientar que nenhuma destas acções é pró-cíclica, o que significa que podem ser implementadas mesmo durante a crise da COVID (com apoio de financiadores onde for necessário aumentar a criação de capacidade). Estas acções podem, inclusive, aumentar a resiliência necessária para ajudar a evitar a próxima crise de dívida oculta ou o recrudescimento do sobre-endividamento.